quarta-feira, 29 de junho de 2011

Família, célula de amor

O crepúsculo coloria o firmamento em tonalidades desbotadas, asserenando a altivez fulgurante do Astro Rei a prenunciar que, em breve, lhe daria as costas, adentrando nas incertezas da escuridão daquela noite natalina.
Solitário, diante de suntuosa janela, fitava, demoradamente, seu reflexo desfocando a paisagem bucólica de quem ele olvidara o convite para uma prosa. Encastelado em sua batalha púnica, sorvia o fel das vicissitudes pretéritas denunciando postura autopiedosa do senhor Eu que vincava, no amor próprio, o leme de suas atitudes, de onde fora tragado pelo vórtice do ensimesmamento egocêntrico. Em contraste com as conquistas monetárias, sofria o torvelinho saudoso da família abandonada por injustificável razão.
Alimentando-se nesta condição, criou seu inimigo mais poderoso: o devorador de células. Ao surpreender-se com o alvitre repentino de que não lhe restaria muito tempo no frágil vaso de carne, inicia sua corrida contra o relógio, exumando praticamente todos os seus recursos na nova empresa. Apesar de despender hercúleo esforço, os resultados negativos talhavam, com maiores detalhes, a sua lápide, não tardando para se entregar à desdita, de conformidade com o destino inexorável.
Empedernido por seu orgulho, cogitara apenas, em última instância, a intervenção da fiel esposa e dos filhinhos de outrora, todavia se julgava imerecedor de albergar seus instantes finais junto aos antigos amores. Impúbere diante do aguilhão, ignorava, em sua mente atônita, a existência de um Poder Maior capaz de realizar qualquer mister. Suspende sua conjectura, ao ringar do aparelho telefônico, surpreso pela invitação de ser abrigado no seio de sua antiga família.
A criatura, que antes lhe obstaculizava os ignominiosos tentames, tornara-se o ágape em seus derradeiros momentos. Figura singular, a ex-senhora indulgente não vacilou em perdoar todas as faltas do ex-senhor; estriba sua fé inabalável no Criador, dedicando-se diariamente, em oração, ao enfermo que se tornara, novamente, o protagonista da família. A alegria das crianças contagiava-o como brisa suave das novas sensações que colaboraram para a ressignificação de seu modelo mental, a renascer em batismo espiritual: o senhor Nós.
A profilaxia do amor, empreendida pela família, lhe balsamizava o coração que, ato contínuo, diminuía o apetite do seu inimigo: o câncer. No arrependimento, encontrara o fundamento para sua transformação; na oração, energia inefável em apoio ao novo cometimento; e, na mudança de conduta, consolida os ensinamentos que as circunstâncias lhe impuseram. O devorador sucumbe às forças luminosas do bem, mas, antes de seu último suspiro, admoesta-o: “não sou teu inimigo, sou tua parte espúria, criatura desventurada, destinada a morrer aniquilando-te ou sendo aniquilado, não me faças nascer novamente, não nos faça sofrer!”.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Do lodo ao lótus

Na maternidade, quando pela palmada golpeado fui, o epíteto de Hades nos pródromos do porvir assinalava. Brincadeiras de criança: chanfalho, açoite e ferrão, sevícias da perdida infância, prematuro salto para o adulto obscuro mundo adentrei, não tardando da casa sair em refúgio para bem longe do cárcere dos irmãos meus.
A liberdade da rua confundida é com poder fazer o que quer, pois, da dominação dos verdugos paternos para os déspotas miseráveis passei. A noite iluminada pelo Sol para dormir seguro é, na contramão dos viventes seres, e a cada dia vivia sem rumo nem poesia.
Crisálidas de esperança em adotado ser, albergava ainda, na ingenuidade pudica da tenra idade, insólito lenitivo a manter o compasso do coração.
Na escuridão do abismo laico, em resposta ao desiderato por um ósculo humano, o céu chorava-me em compaixão sendo suas lágrimas as únicas criaturas que ousavam tocar o trôpego corpo.
Ao acolhimento da mãe Natureza, em abnegada faina, percebia que o poder da rainha indiferença, limites neste mundo continha.
Nas migalhas espalhadas pelo chão, feliz com os irmãozinhos voadores, aquiescentes da presença minha, banqueteávamos no salão nobre de nossa democrática corte, emoldurada pela diversidade de cores harmônicas e embalada pela insólita orquestra onomatopéica.
Da árvore frondosa, morada caridosa, confortável triclínio oferecia: no fruto, na sombra, no abrigo, velava-me no esplendor do espírito maternal.
Às vezes, não resistia, e da solidão emergia saudosas longínquas lembranças não vividas, mas suave brisa assinalava companhia.
E do sonho terreno desperto fui, olhos inundados represavam o pranto até último instante que se revelaria o casal de anjos guiado por um archote, a penumbra descortinar. Abriram-se as comportas em rios e afluentes as lágrimas de alegria na visão de meu galardão quando mamãe e papai de outra era carregavam-me no colo, embalados por coro de meninos:
“Bem aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus;
  Bem aventurados os que choram, porque serão consolados;
  Bem aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra;
  Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos...”