sexta-feira, 22 de julho de 2011

O escafandrista

                 Submerso na vastidão da mente humana a explorar seus incólumes escaninhos, eu, escafandrista[1] de almas, transito entre elas em anonimato, como hospedeiro, sob minha diferenciada perspectiva, que faculta acesso privilegiado aos corpos viventes. Debruçado a pesquisar a natureza íntima do pensamento, que por sua complexidade de possibilidades e singularidade dos indivíduos, atribuí de início, o caráter, quase científico, do meu trabalho. Nesta direção, o escopo a ser observado, versa sobre os enigmas fascinantes da afetividade e seus respectivos meandros. Acompanhemos, pois, o desenrolar do episódio estudado de um casal, em particular, mas que, apresenta, de forma augusta, boa parte do universo pesquisado.
Sem a desnecessária outorga do proprietário carnal, adentremos o universo inóspito da personagem de sexo masculino. Este incoerente ser alterna, em polaridades extremas, seu humor, ditado pela excitação escatológica, ora lasciva, ora visceral, que quando não bem sucedida, eclode em vociferação, no vácuo de si mesmo, apresentando os andrajos que revestem sua mente aturdida. Nos breves lampejos de equilíbrio psíquico, por suas virtudes, pulsos eletromagnéticos sedativos, em contrapartida, colaboram a desanuviar a combalida massa encefálica. Neste instável quadro, a fim de evitar o colapso emocional, a criatura observada, inicia infrene busca ao encontro de outrem, que lhe possibilite a completude afetiva. Destarte, o íncubo[2], mesmo em aparente beleza física, não consegue dissimular, a meus olhos, a fácies lupina de seu padrão mental à caça de sua presa, com intuito de lhe assenhorear as energias.
                Por conseguinte, anui a mulher, no papel de súcubo[3], deixando-se inebriar pelo encantamento de feromônio do licantropo. O engodo de suas promessas é aceito pela mulher que, não menos responsável por sua escolha, acolhe, em conluio de jactância, contra si mesmos, o homem desconhecido, à sua intimidade. Tenciona, assim como ele, preencher o vazio afetivo, a oferecer algum significado existencial. Ato contínuo, as cenas do acasalamento, que dispensam as minúcias, embrulha-me o estômago, pela completa desconexão de emoções e agressividade de movimentos, numa dança primitiva da tragédia do exercício sagrado do matrimônio, finalizada no tombamento dos corpos espalhados em direções opostas, a recuperar o fôlego da jornada exaustiva, porém não satisfeita. Convém acrescentar que, assim como eu, uma turba, em azáfama, assiste ao espetáculo estertorante, porém, imperceptíveis aos sentidos do casal. Produto deste ato fortuito, duas substâncias segregadas dos protagonistas fundem-se na prodigiosa simbiose celular, no ventre da mulher, coroando o milagre da vida, a qual não julga a forma como foi concebida.
                 Está formada mais uma família na sociedade. A dupla de buscadores a sós, espera do outro o retorno de seus investimentos emocionais. Egoístas, a mente dominante e a mente dominada, exigem a satisfação de seus desejos, mas sem, ao menos, oferecer-se ao outro em sentimentos de ternura e carinho. O sexo acrobático que praticam favorece-lhes apenas os músculos, contribuindo com o distanciamento entre eles que fica cada vez mais evidente, e o casamento fadado ao desastre.
                Em meio ao turbilhão dos progenitores, está uma pequena alma, sedenta de amor, que em sua ingenuidade e pureza confia no êxito da família. O pequenino irradia sabedoria, apesar da tenra idade, por seu espírito missionário, transbordando o amor de seu coração em eflúvios de paz e fraternidade. Invertem-se os papéis: a criança, educadora moral, ensina aos pais a compreensão do amor sublimado, e, por sua vontade, lidera a obra de reconstrução dos alicerces daquele lar.
                Por isso, declaro amor à humanidade, por sempre me surpreender!


[1] Nota do escafandrista: O escafandro, neste caso, representa escudo psíquico protetor frente às insídias das mentes visitadas que, porventura, venham assaltar-me a razão.
[2] Íncubo: Demônio masculino que, segundo velha crença popular, vem pela noite copular com uma mulher, perturbando-lhe o sono e causando-lhe pesadelos. Dicionário Aurélio
[3] Súcubo: Indivíduo sem força de vontade que se deixa sugestionar por outro de personalidade mais forte (íncubo) a tal ponto que sua volição se anula de todo, passando ele a ser dirigido pelo último de maneira absoluta. Dicionário Aurélio


quarta-feira, 13 de julho de 2011

Caminhos

Nos confins do planeta, onde nem o homem e nem os animais ousam dominar, gigantes de pedra se erguem ladeados aos céus. A cordilheira, entrincheirada, recebe nas ordens do Criador pelo sibilar das cortantes rajadas do vento, a missão de proteger o continente. Sentinela da terra oferece repositório, com mais intensidade no inverno, a criaturas inócuas que jazem em seus alvos gélidos vértices, ensejando o despertar na estação seguinte.
A disciplina do movimento contínuo dos astros, mais uma vez é sentida, quando a Terra bafejada pelo Astro Maior conclama os seres a exaltar as cores da Vida.
Aquelas criaturas são acordadas, como por encanto, pela fusão das partículas luminosas à robustez da superfície congelada nos cimos das montanhas. Cada gota despertada consubstancia seus elementos materiais àquela intangível que lhe criou: a Luz. Ignora a condição lucífera, mas inicia sua senda guiada em automatismo por força gravitacional, desconhecida, a impulsioná-la colina abaixo.
Duas delas, já cônscias de si, entreolham-se num golpe de vista, admiradas pela semelhança e travam breve diálogo, cada qual carreando consigo as conquistas amealhadas até aquele ponto do percurso. Almas gêmeas firmam pacto de fidelidade a denotar o grau de identificação que se estabelecera, mas, apesar da aparente sintonia, guardam diferentes vontades não declaradas, que em breve se evidenciaria.
                Na visão de alegre caravana a formar pequeno córrego, distribuindo sorrisos e gentilezas, a dupla é convidada a se unir ao grupo, que apresenta a filosofia do amor ao Oceano e a todas as gotas, revelada por Aquele a quem seguem. A reação dicotômica das duas sela os destinos díspares das amigas: uma busca a felicidade compartilhada, a outra a satisfação de seus desejos.
                A congregação se fortalece com mais uma integrante que contribui para acelerar a jornada de todas. O caminho estreito a ser trilhado é árduo e muitas sucumbem desertando suas missões: requer confiança no Líder, que vai a frente de todas, e disciplina na aplicação de Seus ensinamentos. A recruta corresponde em obediência e abnegação, colaborando com a marcha coletiva. Recorda da antiga amiga emitindo pensamentos das melhores estimas, rogando o reencontro no Oceano profetizado pelo Mestre.
                Em outra instância, a recalcitrante emprazada a repousar, frena sua descida ao encontro do ambicionado repasto. Descortina-se formoso lago adornado por pomposa flora a hospedar suas semelhantes em frenesi hedônico. Vive-se, ali, como se não houvesse o amanhã e cada um por si sorve o máximo das possibilidades oferecidas naquela perspectiva. Num átimo, o charco ulterior ao lago desfaz a aparente beleza e euforia que cedem lugar a obscuridade do pranto e ranger de dentes quando as bactérias da indolência e iniquidade dizimam todos os seus habitantes.
                Evaporadas, sobem aos céus de onde podem ver com mais acuidade os desatinos empenhados na ilusão das conquistas fugazes. Sofrem a imolação no sopeso da sentença condenatória da própria consciência, alcunha da Luz, que em verdade são. A observância da Lei se faz imperativa na precipitação, aos quais aqueles arrependidos espectros retornam ao mesmo habitat de outrora na forma de chuva. A alma gêmea transviada, agora renascida, recebe nova oportunidade de reencontrar seu antigo amor caso aceite palmilhar junto ao pequeno córrego que a espera de braços abertos.