quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Do maravilhoso e do sobrenatural - O Livro dos Médiuns

Allan Kardec, no capítulo II de “O Livro dos Médiuns”, examina o sistema que imputa as manifestações dos Espíritos como sobrenatural ou maravilhoso, elabora, através de seu prodigioso raciocínio lógico, as argumentações necessárias que refutam os questionamentos mal fundamentados e, por fim, desafia, em sua batalha filosófica, aqueles que provarem que tais manifestações, em tela, são contrárias às leis da Natureza.
Há uma divergência fundamentalmente ontológica entre aquele sistema e Kardec, e de difícil equação, quando os entendimentos díspares se anulam mutuamente. Na compreensão espírita, o Espírito desencarnado é um ser inteligente, que possui a faculdade do pensamento contínuo expressado em sua perspectiva sutil, e esta faculdade ultrapassa as fronteiras materiais entre os dois planos, o que possibilita impressionar os elementos químicos que constituem os corpos e objetos, relativizando o efeito, a depender da intenção e do teor vibratório.
André Luiz, em “Evolução em Dois Mundos”, esclarece-nos da diversidade de formações materiais hauridas do fluido cósmico universal: “Elementos atômicos mais complicados e sutis, aquém do hidrogênio e além do urânio, em forma diversa daquela em que se caracterizam na gleba planetária, engrandecem-lhe a série esquiogenética[1]”.
Portanto, não há nada de antinatural, visto que um experimento bem-sucedido, como o da manifestação dos espíritos, respeita as Leis Naturais e Divinas, mas escapando à razão daqueles que não a compreendem e nem o desejam, por orgulho, duvidam de maneira ingênua.


[1] Tabela Periódica

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Há Espíritos? - O Livro dos Médiuns

Essa pergunta pode parecer despropositada para um verdadeiro espírita, certo? Não para o Codificador da Doutrina que a postou como o ponto de partida do livro em tela.
Será que nós teríamos condições de respondê-la de forma contundente, baseada na razão, ou será que responderíamos por crença? Será que responderíamos: “acredito, claro!” ou  utilizaríamos argumentos convincentes para nós mesmos? Por que a maioria de nós teme a morte? Por que medramos diante da visão de um Espírito, mesmo sendo de um parente amado? Será que conhecemos, de fato, a sua natureza? Até que ponto confiamos na narrativa de um médium ao expor uma experiência? Quantas perguntas se sucederam, não é? Talvez ainda sejamos reticentes em relação a esta questão, ou por ignorância ou por ainda carregarmos os atavismos dogmáticos ínsitos em nosso ser por milênios.
Kardec, por outro lado, dissecou a pergunta em epígrafe utilizando seus predicados intelectuais em nosso auxílio. O Codificador elabora seu raciocínio por indução, a partir de algumas premissas (princípio que serve de base para se chegar a uma conclusão). Nesta direção, vamos tentar reconstruir a lógica empregada por ele. 
1.     Deus existe. A base argumentativa está fundada no teísmo. A negação absoluta de qualquer inteligência fora da matéria impossibilita a continuação do raciocínio. Portanto, a argumentação para a existência de Deus precede a discussão acerca da existência dos Espíritos; no axioma de nossa ciência, não há efeito sem causa, tudo que não for obra do homem, certamente, não foi do acaso.
2.     O homem tem uma alma. Se pensamos, logo existimos. Se existimos, logo fomos criados por uma “inteligência suprema, causa primária de todas as coisas.” Esta afirmativa encerra que Deus criou a matéria e os princípios inteligentes (espíritos) que se desenvolveram por várias fases (reinos) até a que nos encontramos hoje, a hominal. Em verdade, somos Espíritos individualizados e, quando encarnamos, passamos a ter uma alma, que é a manifestação inteligente, fruto do binômio Espírito-matéria (ver “O Livro dos Espíritos, questão 76).
3.     A natureza do Espírito difere da do corpo. O Espírito se utiliza da mente para manipular as propriedades da matéria inerentes de nosso orbe, a fim de moldar a forma com que se manifesta nos dois planos. A máxima “dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo” poderia invalidar o nosso raciocínio, pois o perispírito “habita” a matéria mais densa do corpo, concomitantemente. Porém vale ressaltar que ainda não há, na ciência, equipamento que possa detectar o corpo semimaterial.
4.     A alma sobrevive após a morte do corpo. Somos almas hoje encarnadas e continuamos existindo após a extinção do corpo carnal. De que valeria, para o Criador, seres “provisórios” e imprestáveis na perspectiva da eternidade? Necessariamente, mantemos nossa individualidade espiritual e damos continuidade a ela em nossa jornada evolutiva.
5.     O Espírito destituído do corpo carnal goza de consciência de si mesmo. Atributo da individualidade, o sentido de existência faculta ao Espírito o desejo de alcançar seus objetivos, cada qual no seu nível evolutivo. Destituídos desta consciência, seríamos seres sem utilidade para a vida maior.
6.     A alma vai para alguma parte. Quanto à circunspeção da alma no espaço, também é forçoso aduzir que, de alguma sorte, por ser constituída de matéria sutil e de possuir vontade própria, habitará locais que lhe forem particularmente associados, por sintonia, às suas conquistas morais.
7.     O Espírito desencarnado pode comunicar-se com os encarnados. Por fim, com o fito de apresentar a existência dos Espíritos como sentença verdadeira, ainda temos todas as provas milenares, que perduram até os dias de hoje, de manifestações que, para muitos, são originadas por seres demoníacos ou por fraude. O fato é que, apesar da distância vibracional da constituição dos corpos, a mente é o elo que faculta a ligação entre os seres nos dois mundos.
A dialética que Allan Kardec empregou em seus estudos filosóficos substituiu os dogmas milenares das doutrinas impostas pelos cleros por meio do raciocínio. Procura, com isso, desmistificar uma série de preconceitos, que vigem ainda hoje, acerca dos Espíritos e de suas manifestações, mas que, com o tempo, o homem amadurecerá e as religiões unificar-se-ão nos ensinamentos morais de Jesus à luz do bom senso e da razão.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

O CAMINHO PARA A LUZ

O Senhor estabeleceu, na gênese do espírito, um laço simbiótico com a matéria, responsável pela manifestação da vida, desde o elemento inorgânico ao orgânico.
Nesse binômio espírito-matéria, nos desenvolvemos continuamente, através de sucessivas experiências, a princípio, de forma inconsciente e reativa com o meio, ao longo dos diversos reinos, até ao que nos encontramos atualmente, em consciência individualizada: o hominal (Espírito-matéria). Nesse estágio, já alcançamos o domínio relativo das estruturas e dos sistemas que regem os envoltórios necessários à exteriorização de nossa individualidade, norteados pela razão e pelo livre-arbítrio, impulsionados pela Vontade, condutora de nossa vida.
Eis o que somos: Espíritos imortais, cônscios de nossa existência, em trânsito recorrente e involuntário entre as duas dimensões deste planeta, até que consigamos resgatar todos os débitos adquiridos no decurso dessa jornada evolutiva e, finalmente, nos libertarmos da necessidade do vínculo à matéria embrutecida da Terra.
Deus nos ofertou a matéria, a fim de experimentá-la, conhecê-la, manipulá-la em seus diversos níveis de complexidade e superá-la, ou seja, na interação Espírito-matéria, o homem termina por dominar a natureza material, visto que, nesse processo, está inserida a diversidade humana no convívio social com as diferenças. Desse modo, dependemos uns dos outros nas múltiplas áreas do conhecimento. Quis Ele, com isso, que aprendêssemos a conhecer a natureza humana.
Nesse caminho para a luz, os seres angélicos dominam duas etapas ascensionais: a matéria e o homem; portanto, o conhecimento dos sistemas complexos naturais os faz reger a orquestra das diretrizes Divinas em instâncias superiores, numa perfeita cadeia de ações harmônicas, até os confins do Universo, que, por hora, não temos capacidade de compreender.
   Como pintar quadros para o Senhor se achamos que somos tinta?

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Resumo da Introdução de O Livro dos Médiuns

Com a publicação de “O Livro dos Espíritos”, em 1857, Allan Kardec apresenta a Filosofia Espiritualista contendo os princípios da Doutrina Espírita sobre: a imortalidade da alma, a natureza dos Espíritos e suas relações com os homens, as leis morais, a vida presente, a vida futura e o porvir da Humanidade. Naquele momento, a Doutrina já não era mais espetáculo frívolo para boa parte dos estudiosos e médiuns que se ocupavam com as manifestações, porém objeto de estudo sério destinado ao aprofundamento das questões existenciais. No intuito de colaborar com estes, o Codificador publicou um manual, intitulado “Instrução Prática”, com o fito de guiar os médiuns, mas logo desistiu do material por considerar a obra incompleta e, de certo modo, perigosa, se caísse em mãos descuidadas, substituindo-a então por outra: “O Livro dos Médiuns”, publicado em 1861, tematizado como Espiritismo Experimental, em continuação de O Livro dos Espíritos – leitura primeira e obrigatória. “O Livro dos Médiuns” contém os ensinamentos dos Espíritos sobre: a teoria de todos os gêneros de manifestações, os meios de comunicação com o Mundo Invisível, o desenvolvimento da mediunidade, as dificuldades e os escolhos que se podem encontrar na prática do Espiritismo. O professor de Lyon tencionou com esta obra acautelar quaisquer pessoas que lidassem com as práticas do Espiritismo ante as dificuldades, enganos e escolhos. Este livro tem como objetivos: indicar os meios para o desenvolvimento mediúnico e guiar os estudiosos dos fenômenos espíritas em suas observações, de modo a conseguirem comunicações úteis à sociedade.
À primeira vista, “O Livro dos Médiuns” pode parecer, extenso e deveras metodológico, mas, com certeza, não por acaso, Kardec o conduziu desta forma, tornando-o mais completo e, por conseguinte, complexo. Aquele que, por motivo sério, deseja se aprofundar nos ensinamentos da Doutrina dos Espíritos deve ter a índole de estudioso, pois o Espírito de Verdade já nos admoestara: “Espíritas! amai-vos, este o primeiro ensinamento; instruí-vos, este o segundo”.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

O escafandrista

                 Submerso na vastidão da mente humana a explorar seus incólumes escaninhos, eu, escafandrista[1] de almas, transito entre elas em anonimato, como hospedeiro, sob minha diferenciada perspectiva, que faculta acesso privilegiado aos corpos viventes. Debruçado a pesquisar a natureza íntima do pensamento, que por sua complexidade de possibilidades e singularidade dos indivíduos, atribuí de início, o caráter, quase científico, do meu trabalho. Nesta direção, o escopo a ser observado, versa sobre os enigmas fascinantes da afetividade e seus respectivos meandros. Acompanhemos, pois, o desenrolar do episódio estudado de um casal, em particular, mas que, apresenta, de forma augusta, boa parte do universo pesquisado.
Sem a desnecessária outorga do proprietário carnal, adentremos o universo inóspito da personagem de sexo masculino. Este incoerente ser alterna, em polaridades extremas, seu humor, ditado pela excitação escatológica, ora lasciva, ora visceral, que quando não bem sucedida, eclode em vociferação, no vácuo de si mesmo, apresentando os andrajos que revestem sua mente aturdida. Nos breves lampejos de equilíbrio psíquico, por suas virtudes, pulsos eletromagnéticos sedativos, em contrapartida, colaboram a desanuviar a combalida massa encefálica. Neste instável quadro, a fim de evitar o colapso emocional, a criatura observada, inicia infrene busca ao encontro de outrem, que lhe possibilite a completude afetiva. Destarte, o íncubo[2], mesmo em aparente beleza física, não consegue dissimular, a meus olhos, a fácies lupina de seu padrão mental à caça de sua presa, com intuito de lhe assenhorear as energias.
                Por conseguinte, anui a mulher, no papel de súcubo[3], deixando-se inebriar pelo encantamento de feromônio do licantropo. O engodo de suas promessas é aceito pela mulher que, não menos responsável por sua escolha, acolhe, em conluio de jactância, contra si mesmos, o homem desconhecido, à sua intimidade. Tenciona, assim como ele, preencher o vazio afetivo, a oferecer algum significado existencial. Ato contínuo, as cenas do acasalamento, que dispensam as minúcias, embrulha-me o estômago, pela completa desconexão de emoções e agressividade de movimentos, numa dança primitiva da tragédia do exercício sagrado do matrimônio, finalizada no tombamento dos corpos espalhados em direções opostas, a recuperar o fôlego da jornada exaustiva, porém não satisfeita. Convém acrescentar que, assim como eu, uma turba, em azáfama, assiste ao espetáculo estertorante, porém, imperceptíveis aos sentidos do casal. Produto deste ato fortuito, duas substâncias segregadas dos protagonistas fundem-se na prodigiosa simbiose celular, no ventre da mulher, coroando o milagre da vida, a qual não julga a forma como foi concebida.
                 Está formada mais uma família na sociedade. A dupla de buscadores a sós, espera do outro o retorno de seus investimentos emocionais. Egoístas, a mente dominante e a mente dominada, exigem a satisfação de seus desejos, mas sem, ao menos, oferecer-se ao outro em sentimentos de ternura e carinho. O sexo acrobático que praticam favorece-lhes apenas os músculos, contribuindo com o distanciamento entre eles que fica cada vez mais evidente, e o casamento fadado ao desastre.
                Em meio ao turbilhão dos progenitores, está uma pequena alma, sedenta de amor, que em sua ingenuidade e pureza confia no êxito da família. O pequenino irradia sabedoria, apesar da tenra idade, por seu espírito missionário, transbordando o amor de seu coração em eflúvios de paz e fraternidade. Invertem-se os papéis: a criança, educadora moral, ensina aos pais a compreensão do amor sublimado, e, por sua vontade, lidera a obra de reconstrução dos alicerces daquele lar.
                Por isso, declaro amor à humanidade, por sempre me surpreender!


[1] Nota do escafandrista: O escafandro, neste caso, representa escudo psíquico protetor frente às insídias das mentes visitadas que, porventura, venham assaltar-me a razão.
[2] Íncubo: Demônio masculino que, segundo velha crença popular, vem pela noite copular com uma mulher, perturbando-lhe o sono e causando-lhe pesadelos. Dicionário Aurélio
[3] Súcubo: Indivíduo sem força de vontade que se deixa sugestionar por outro de personalidade mais forte (íncubo) a tal ponto que sua volição se anula de todo, passando ele a ser dirigido pelo último de maneira absoluta. Dicionário Aurélio


quarta-feira, 13 de julho de 2011

Caminhos

Nos confins do planeta, onde nem o homem e nem os animais ousam dominar, gigantes de pedra se erguem ladeados aos céus. A cordilheira, entrincheirada, recebe nas ordens do Criador pelo sibilar das cortantes rajadas do vento, a missão de proteger o continente. Sentinela da terra oferece repositório, com mais intensidade no inverno, a criaturas inócuas que jazem em seus alvos gélidos vértices, ensejando o despertar na estação seguinte.
A disciplina do movimento contínuo dos astros, mais uma vez é sentida, quando a Terra bafejada pelo Astro Maior conclama os seres a exaltar as cores da Vida.
Aquelas criaturas são acordadas, como por encanto, pela fusão das partículas luminosas à robustez da superfície congelada nos cimos das montanhas. Cada gota despertada consubstancia seus elementos materiais àquela intangível que lhe criou: a Luz. Ignora a condição lucífera, mas inicia sua senda guiada em automatismo por força gravitacional, desconhecida, a impulsioná-la colina abaixo.
Duas delas, já cônscias de si, entreolham-se num golpe de vista, admiradas pela semelhança e travam breve diálogo, cada qual carreando consigo as conquistas amealhadas até aquele ponto do percurso. Almas gêmeas firmam pacto de fidelidade a denotar o grau de identificação que se estabelecera, mas, apesar da aparente sintonia, guardam diferentes vontades não declaradas, que em breve se evidenciaria.
                Na visão de alegre caravana a formar pequeno córrego, distribuindo sorrisos e gentilezas, a dupla é convidada a se unir ao grupo, que apresenta a filosofia do amor ao Oceano e a todas as gotas, revelada por Aquele a quem seguem. A reação dicotômica das duas sela os destinos díspares das amigas: uma busca a felicidade compartilhada, a outra a satisfação de seus desejos.
                A congregação se fortalece com mais uma integrante que contribui para acelerar a jornada de todas. O caminho estreito a ser trilhado é árduo e muitas sucumbem desertando suas missões: requer confiança no Líder, que vai a frente de todas, e disciplina na aplicação de Seus ensinamentos. A recruta corresponde em obediência e abnegação, colaborando com a marcha coletiva. Recorda da antiga amiga emitindo pensamentos das melhores estimas, rogando o reencontro no Oceano profetizado pelo Mestre.
                Em outra instância, a recalcitrante emprazada a repousar, frena sua descida ao encontro do ambicionado repasto. Descortina-se formoso lago adornado por pomposa flora a hospedar suas semelhantes em frenesi hedônico. Vive-se, ali, como se não houvesse o amanhã e cada um por si sorve o máximo das possibilidades oferecidas naquela perspectiva. Num átimo, o charco ulterior ao lago desfaz a aparente beleza e euforia que cedem lugar a obscuridade do pranto e ranger de dentes quando as bactérias da indolência e iniquidade dizimam todos os seus habitantes.
                Evaporadas, sobem aos céus de onde podem ver com mais acuidade os desatinos empenhados na ilusão das conquistas fugazes. Sofrem a imolação no sopeso da sentença condenatória da própria consciência, alcunha da Luz, que em verdade são. A observância da Lei se faz imperativa na precipitação, aos quais aqueles arrependidos espectros retornam ao mesmo habitat de outrora na forma de chuva. A alma gêmea transviada, agora renascida, recebe nova oportunidade de reencontrar seu antigo amor caso aceite palmilhar junto ao pequeno córrego que a espera de braços abertos.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Família, célula de amor

O crepúsculo coloria o firmamento em tonalidades desbotadas, asserenando a altivez fulgurante do Astro Rei a prenunciar que, em breve, lhe daria as costas, adentrando nas incertezas da escuridão daquela noite natalina.
Solitário, diante de suntuosa janela, fitava, demoradamente, seu reflexo desfocando a paisagem bucólica de quem ele olvidara o convite para uma prosa. Encastelado em sua batalha púnica, sorvia o fel das vicissitudes pretéritas denunciando postura autopiedosa do senhor Eu que vincava, no amor próprio, o leme de suas atitudes, de onde fora tragado pelo vórtice do ensimesmamento egocêntrico. Em contraste com as conquistas monetárias, sofria o torvelinho saudoso da família abandonada por injustificável razão.
Alimentando-se nesta condição, criou seu inimigo mais poderoso: o devorador de células. Ao surpreender-se com o alvitre repentino de que não lhe restaria muito tempo no frágil vaso de carne, inicia sua corrida contra o relógio, exumando praticamente todos os seus recursos na nova empresa. Apesar de despender hercúleo esforço, os resultados negativos talhavam, com maiores detalhes, a sua lápide, não tardando para se entregar à desdita, de conformidade com o destino inexorável.
Empedernido por seu orgulho, cogitara apenas, em última instância, a intervenção da fiel esposa e dos filhinhos de outrora, todavia se julgava imerecedor de albergar seus instantes finais junto aos antigos amores. Impúbere diante do aguilhão, ignorava, em sua mente atônita, a existência de um Poder Maior capaz de realizar qualquer mister. Suspende sua conjectura, ao ringar do aparelho telefônico, surpreso pela invitação de ser abrigado no seio de sua antiga família.
A criatura, que antes lhe obstaculizava os ignominiosos tentames, tornara-se o ágape em seus derradeiros momentos. Figura singular, a ex-senhora indulgente não vacilou em perdoar todas as faltas do ex-senhor; estriba sua fé inabalável no Criador, dedicando-se diariamente, em oração, ao enfermo que se tornara, novamente, o protagonista da família. A alegria das crianças contagiava-o como brisa suave das novas sensações que colaboraram para a ressignificação de seu modelo mental, a renascer em batismo espiritual: o senhor Nós.
A profilaxia do amor, empreendida pela família, lhe balsamizava o coração que, ato contínuo, diminuía o apetite do seu inimigo: o câncer. No arrependimento, encontrara o fundamento para sua transformação; na oração, energia inefável em apoio ao novo cometimento; e, na mudança de conduta, consolida os ensinamentos que as circunstâncias lhe impuseram. O devorador sucumbe às forças luminosas do bem, mas, antes de seu último suspiro, admoesta-o: “não sou teu inimigo, sou tua parte espúria, criatura desventurada, destinada a morrer aniquilando-te ou sendo aniquilado, não me faças nascer novamente, não nos faça sofrer!”.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Do lodo ao lótus

Na maternidade, quando pela palmada golpeado fui, o epíteto de Hades nos pródromos do porvir assinalava. Brincadeiras de criança: chanfalho, açoite e ferrão, sevícias da perdida infância, prematuro salto para o adulto obscuro mundo adentrei, não tardando da casa sair em refúgio para bem longe do cárcere dos irmãos meus.
A liberdade da rua confundida é com poder fazer o que quer, pois, da dominação dos verdugos paternos para os déspotas miseráveis passei. A noite iluminada pelo Sol para dormir seguro é, na contramão dos viventes seres, e a cada dia vivia sem rumo nem poesia.
Crisálidas de esperança em adotado ser, albergava ainda, na ingenuidade pudica da tenra idade, insólito lenitivo a manter o compasso do coração.
Na escuridão do abismo laico, em resposta ao desiderato por um ósculo humano, o céu chorava-me em compaixão sendo suas lágrimas as únicas criaturas que ousavam tocar o trôpego corpo.
Ao acolhimento da mãe Natureza, em abnegada faina, percebia que o poder da rainha indiferença, limites neste mundo continha.
Nas migalhas espalhadas pelo chão, feliz com os irmãozinhos voadores, aquiescentes da presença minha, banqueteávamos no salão nobre de nossa democrática corte, emoldurada pela diversidade de cores harmônicas e embalada pela insólita orquestra onomatopéica.
Da árvore frondosa, morada caridosa, confortável triclínio oferecia: no fruto, na sombra, no abrigo, velava-me no esplendor do espírito maternal.
Às vezes, não resistia, e da solidão emergia saudosas longínquas lembranças não vividas, mas suave brisa assinalava companhia.
E do sonho terreno desperto fui, olhos inundados represavam o pranto até último instante que se revelaria o casal de anjos guiado por um archote, a penumbra descortinar. Abriram-se as comportas em rios e afluentes as lágrimas de alegria na visão de meu galardão quando mamãe e papai de outra era carregavam-me no colo, embalados por coro de meninos:
“Bem aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus;
  Bem aventurados os que choram, porque serão consolados;
  Bem aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra;
  Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos...”

terça-feira, 31 de maio de 2011

O Corpo Perfeito

Os cientistas, que ainda têm muito a conhecer sobre o funcionamento do corpo humano, tentam, improficuamente, compreender a natureza do corpo de Jesus Cristo, intrigados em entender como Ele pôde ressuscitar, após ter sido supliciado e ascendido aos céus. Cabe-nos, aqui, deixar isso para segundo plano, visto que, se há um mistério em torno de Seu corpo, há indubitável certeza quanto ao Seu ministério.
A máxima, “mente sã, corpo são”, configura-se, no estado da arte, o exemplo ímpar do maior intérprete de Deus que já visitou nosso planeta. Nesta direção, ousaremos descrever, palidamente, a forma com que Ele se manifestou, cientes de que não há vocabulário, por mais erudito, em palavrear a expressão magnânima do inenarrável.
Ousemos então:
“Lábios de beleza invulgar foram esculpidos com todo o cuidado na simetria de suas linhas e tonalidades de cores harmônicas, a magnetizar quem os visse e por eles ouvisse as doces melodias da Verdade da Boa Nova.
Pelos caminhos por onde percorreu, sacralizaram-se o solo, as plantas, as flores, os animais, irradiando perfume encantador, pois Seus pés O guiaram sempre na firme senda da Retidão.
Não estava subjugado ao tempo, pelo contrário, seu cérebro ligava-O diretamente a Deus pelo pulso cósmico que ditava o ritmo de Suas ações, numa obediência e disciplina do músico que executa, com fidelidade, a parte que Lhe cabe na orquestra, sem questionar a melodia ou o Maestro.
Seus joelhos jamais deixaram de dobrar-se diante do Pai, quando, com toda a delicadeza, beijava o chão na perfeita comunhão entre a terra e o céu. Na mesma posição, lavou os pés daqueles que O seguiam, apresentando a humildade em todo o esplendor, pois, mesmo sendo Mestre, veio para servir e não ser servido.
Hauria inesgotável energia no influxo do trabalho incessante na caridade, onde suas mãos, por compaixão, sempre estiveram estendidas às rogativas daqueles que viessem de pura intenção, em busca de Sua intervenção.
Do alto do madeiro infame, com a pele tingida pelo rubro fluido, cumpria-se a profecia pelo perdão, pois Ele que tudo sabia, de Seu sangue viria a salvação.
Seu coração rufava compassadamente, em uníssono com o Criador, espraiando Amor para todos aqueles sedentos de justiça ou fatigados pela dor.”
Sua mensagem atemporal, de alcance mundial, inunda os corações abertos e convida para o grande baile celestial, onde Ele aguarda que nós, vestidos, adequadamente, com a roupa nupcial adentremos Seu reino de glória e de bem-aventurança.

Minha amada mortal

Por que me abandonaste, querida? Neste derradeiro momento, onde estarás? Quanta saudade tenho, meu amor, minha perdição!

Lembro bem quando te conheci: pequena, formosa, atraente, mas lívida, gélida e amarga. Nossos amigos te apresentaram a mim e, mesmo sem intenção, mundo novo de emoção se desvelou. Cores, alegria, energia, vibração, tudo pela sensação de poder calar a tristeza do porvir sem preocupação.

Em tua presença, refúgio de minha alma incauta. Nunca julgaste meu excesso, nem minha falta. Por causa de ti da família afastei. Defendendo nossa relação de todo coração, mas sem compreensão, até o trabalho perdi.

O que fizeste de mim? Talvez não fostes o que eu pensava! Será que estava errado?

Decidido, afastei-me, então, de ti, e a vida me foi retornando ao que era antes de te conhecer: tranquila, mas tediosa.

Num dia ruim, meus amigos nos reconciliaram, porém não era a mesma coisa. Respondias, então, minhas súplicas com laconismo incompreensível. Estorcergava em desvario na nebulosa dos pensamentos que orbitavam minha mente enferma, obliterando sentimentos nobres. Forças telúricas sinistras assaltavam-me a lúgubres presságios seguidos por torrentes reações químicas golpeando a já debilitada máquina biológica. Experimentei a transição do ser para o não ser, o vazio extremo, onde inexistem alegria e tristeza, no calabouço de mim mesmo.

O teu legado: remorso que dilacera o peito e o pranto companheiro que te substituiu. A cirrose hepática dá o golpe de misericórdia em minha triste existência desperdiçada nos desatinos da conduta transviada. Confiei nos amigos fugazes da noite ébria e das risadas funestas embebidas de torpor em minha frágil consciência e me entreguei a ti: a bebida alcoólica.

E tu, amigo, que ris no alto da insensatez que fora minha um dia, tomai de mim o desejo do amigo desconhecido que anseia com esta mensagem o resgate das almas perdidas na ilusão dos prazeres subvertidos na dor.

Paradoxo existencial

Sabe irmãos, ando cambaleante nas certezas de minha maturidade ingênua, e às vezes:

a claridade me cega,
tenho sede em fonte pura,
degusto amargor na douçura,
vejo vivos entre mortos,
recalcitro na disciplina,
tenho medo da fé,
me irrito na gentileza,
o silêncio me ensurdece,
tenho fome no banquete,
busco a verdade na mentira,
clamo socorro sem pedir,
padeço no prazer,
vivo o eterno no transitório,
fujo de mim mesmo.

Oh mundo contraditório!
Até quando dormirei acordado no sonho de minha realidade ilusória?
Até quando a Verdade ser-me-á inconveniente?
Incauto, rebelde e indolente, devo aceitar a máxima do meigo nazareno: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida!".

A Jornada

Pelo Teu amor infinito me deste vida!
Não faltou abrigo, comida e bebida.
Porém, minha ingratidão e iniquidade foi sentida,
de Tua mão austera, mas bendita.

Nova chance foi dada
agora, porém escravizada
por povo desconhecido,
com o coração oprimido.

Clamei, Senhor!
Mandaste, então, Teu servidor.
De cajado na mão, libertou.
Para novas terras, exortou.

Reis e Rainhas tive, mas escravos também.
Afastei-me de Ti, porém.
Sucumbi nova dominação
como meio de educação.

Clamei, Senhor!
Mandaste, então, Teu Salvador.
Da boa nova ensinou amar,
da túnica branca e pés descalços humilhar.

Muitos de mim não entenderam,
cegos e doentes viveram.
Outros de mim Te adoraram,
de alma purificada ficaram.

Eu, povo escolhido, o messias ainda aguardo,
farei parte do reino sagrado.
E eu, povo liberto, canto Hosana,
aprendi a amar toda a raça humana.